sexta-feira, 1 de março de 2013

A E-ducação que queremos


Em se tratando de livros digitais sou um entusiasta… reticente. Isso quer dizer que reverencio a dimensão das mudanças, mas não embarco facilmente em euforias carbonárias. Porém poucas vezes fiquei tão ansioso para que a leitura digital enfim chegasse quanto na semana passada, quando minha filha (10 anos, 5º ano) entregou-me a lista de livros didáticos. Não somente a bibliografia custa o equivalente a uns 40 livros trade (ou a renda mensal de uma família da classe C), como também implica em um caloroso vai-e-volta entre livrarias (físicas ou virtuais) até completar a relação. Meu consolo foi olhar para meu filho (3 anos, maternal) e me dar conta de que, com ele, dificilmente terei que passar por isso — pelos livros didáticos impressos.

Não é otimismo. Na mesma semana que recebi a lista, um impulso irrevogável foi dado para a adoção de livros didáticos digitais. Mais precisamente o parágrafo 3.1.1 do PNLD 2015. Para quem não sabe, as compras do governo são o aparelho que mantém a indústria editorial brasileira respirando, e o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) é o tubo de oxigênio. Quem trabalhou em editora sabe o que é parar tudo e virar noites para atender às cláusulas do FNDE (Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação). Pois bem, neste ano, as obras didáticas do edital foram divididas em dois tipos de “composição”, sendo a primeira “Obra multimídia composta de livros digitais e livros impressos”.

Quem enfrentar as mais de 80 páginas de editalês vai perceber que esse passo do governo em direção ao digital é cauteloso, mas seguro. A cautela vem do detalhe de que ainda não haverá livros digitais autóctones. Isto é, o FNDE quer comprar e-books ou aplicativos que venham com um equivalente impresso, mas que seja uma expansão deste. Devem conter o texto do impresso, e ainda “objetos educacionais digitais — vídeos, imagens, áudios, textos (?), gráficos, tabelas, tutoriais, aplicações, mapas, jogos educacionais, animações, infográficos, páginas web e outros elementos”.

Esta estratégia é mais ou menos como usar suspensórios com cinto. Para garantir. Não se sabe como os livros digitais vão funcionar na sala de aula (vai que falta luz, vai que tem um vírus, vai que dá pau), então é melhor ter o impresso por perto. Como na eleição: não deu no eletrônico, o voto vai no papel. Também é uma estratégia de transição: até a adoção plena do digital, muitos hábitos arraigados terão que ser abandonados, muitos paradigmas vão ter que ser rompidos, então é melhor usar rodinhas.

Porém esse salto mental talvez seja mais complicado para os professores do que os alunos. Mesmo reconhecendo que o acesso ao digital não é assim tão democrático (apesar das compras maciças e algo eufóricas de e-readers pelos governos), os alunos do ensino fundamental têm muito mais traquejo com a linguagem e os equipamentos digitais do que seus professores. E não tem tantos hábitos e costumes para romper. Sem contar que, por conta das transformações recentes, o hiato geracional entre eles é abissal, em termos de tecnologia e poder aquisitivo.

Enquanto as partes — editores, professores e alunos — não encontrarem a linguagem do livro didático digital (sequer se sabe ainda o formato padrão), meu palpite é que vamos pecar pelo exagero. Os primeiros e-didáticos virão com megabytes de penduricalhos, como animações, vídeos e músicas que “farão vista” mas pouco contribuirão para a fixação do aprendizado, para um público que já tem tendência ao déficit de atenção. Será como um daqueles revivals do cinema 3D, nos anos 1980, quando os filmes tinham ioiôs, pássaros e murros na direção do espectador. Muito efeito pra pouca história.

Quando passarmos a fase do exibicionismo e compreendermos que a grande vantagem do digital não éreter conteúdo, e sim gerar e distribuir conteúdo, aí sim teremos instrumentos de educação digital de fato (e não emulações de velhas cartilhas). Pense na Microsoft Encarta, e pense na Wikipedia. A primeira tinha a pretensão de ser a mais completa Enciclopédia, atulhada de gracinhas multimídia. A Wikipedia queria ser uma forma, aberta e simples, de acumular conhecimento, de forma comunitária. A milionária Encarta ficou desatualizada no dia que saiu da fábrica. A Wikipedia tem mais de 4 milhões de artigos, só em inglês, constantemente atualizados.

Dar um salto cultural e reconhecer que o livro didático digital é mais que uma versão eletrônica dos livros que conhecemos pode gerar um efeito parecido. Imagine um livro de Geografia ou História que identifique (por GPS) onde o aluno mora e fale sobre sua cidade, atualizando os dados demográficos. Ou que dê instrumentos para que o professor exerça a curadoria de um cabedal de “objetos didáticos” que estão à disposição na internet (dispensando o atulhamento de bytes no arquivo). E que compile a curadoria de milhares de professores e que sugira o melhor conteúdo extra para cada escola, considerando a localização, situação econômica e nível educacional. Ou um livro que permita a cada escola montar seu “sumário” de acordo com o perfil da turma, ou mesmo um para cada estudante (estimulando vocações, adequando-se a perfis culturais, compensando desníveis).

Enfim, em teoria, o digital já nos dá todos os recursos para que a experiência de aprender com um livro didático não precise mais ser padronizada (o mesmo livro para todo mundo) nem padronizante (todos pensando do mesmo jeito).

McLuhan (sempre ele) previu, há quase meio século, que a chegada da era digital permitiria que os estudantes enfim se livrassem do método educacional de “pacote” e passassem para o de “descoberta”. “À medida que a plateia torna-se participante no drama eletrônico total [por meio da internet] a sala de aula pode tornar-se a cena em que a plateia desempenhará um volume imenso de trabalho.” O velho Marshall acertou em muitas de suas previsões (a internet, a pirataria, a mídia social), mas sua previsão de uma didática eletrônica libertadora ainda está para ser cumprida. Se é que vamos, um dia — ou nossos filhos, ou seus filhos —, cumpri-la.





Julio Silveira é editor, formado em Administração, com extensão em Economia da Cultura. Foi cofundador da Casa da Palavra em 1996, gerente editorial da Agir/Nova Fronteira e publisher da Thomas Nelson. Desde julho de 2011, vem se dedicando à Ímã Editorial, explorando novos modelos de publicação propiciados pelo digital. Tem textos publicados em, entre outros, 10 livros que abalaram meu mundo e Paixão pelos livros (Casa da Palavra), O futuro do livro (Olhares, 2007) e LivroLivre (Ímã). Coordena o fórum Autor 2.0, onde escritores e editores investigam as oportunidades e os riscos da publicação pós-digital.

Foto: Thiago Barros

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