Em se tratando de livros digitais sou um entusiasta… reticente.
Isso quer dizer que reverencio a dimensão das mudanças, mas não embarco
facilmente em euforias carbonárias. Porém poucas vezes fiquei tão ansioso para
que a leitura digital enfim chegasse quanto na semana passada, quando minha
filha (10 anos, 5º ano) entregou-me a lista de livros didáticos. Não somente a bibliografia
custa o equivalente a uns 40 livros trade (ou a renda mensal de uma
família da classe C), como também implica em um caloroso vai-e-volta entre
livrarias (físicas ou virtuais) até completar a relação. Meu consolo foi olhar
para meu filho (3 anos, maternal) e me dar conta de que, com ele, dificilmente
terei que passar por isso — pelos livros didáticos impressos.
Não é otimismo. Na mesma semana que recebi a lista, um impulso
irrevogável foi dado para a adoção de livros didáticos digitais. Mais
precisamente o parágrafo 3.1.1 do PNLD 2015. Para quem não sabe, as compras do
governo são o aparelho que mantém a indústria editorial brasileira respirando,
e o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) é o tubo de oxigênio. Quem
trabalhou em editora sabe o que é parar tudo e virar noites para atender às
cláusulas do FNDE (Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação). Pois bem,
neste ano, as obras didáticas do edital foram divididas em dois tipos de
“composição”, sendo a primeira “Obra multimídia composta de livros digitais e
livros impressos”.
Quem enfrentar as mais de 80 páginas de editalês vai perceber que esse
passo do governo em direção ao digital é cauteloso, mas seguro. A cautela vem
do detalhe de que ainda não haverá livros digitais autóctones. Isto é, o FNDE quer
comprar e-books ou aplicativos que venham com um equivalente impresso, mas que
seja uma expansão deste. Devem conter o texto do impresso, e ainda “objetos
educacionais digitais — vídeos, imagens, áudios, textos (?), gráficos,
tabelas, tutoriais, aplicações, mapas, jogos educacionais, animações,
infográficos, páginas web e outros elementos”.
Esta estratégia é mais ou menos como usar suspensórios com cinto. Para
garantir. Não se sabe como os livros digitais vão funcionar na sala de aula
(vai que falta luz, vai que tem um vírus, vai que dá pau), então é melhor ter o
impresso por perto. Como na eleição: não deu no eletrônico, o voto vai no
papel. Também é uma estratégia de transição: até a adoção plena do digital,
muitos hábitos arraigados terão que ser abandonados, muitos paradigmas vão ter
que ser rompidos, então é melhor usar rodinhas.
Porém esse salto mental talvez seja mais complicado para os professores
do que os alunos. Mesmo reconhecendo que o acesso ao digital não é assim tão
democrático (apesar das compras maciças e algo eufóricas de e-readers pelos
governos), os alunos do ensino fundamental têm muito mais traquejo com a
linguagem e os equipamentos digitais do que seus professores. E não tem tantos
hábitos e costumes para romper. Sem contar que, por conta das transformações
recentes, o hiato geracional entre eles é abissal, em termos de tecnologia e
poder aquisitivo.
Enquanto as partes — editores, professores e alunos — não
encontrarem a linguagem do livro didático digital (sequer se sabe ainda o formato
padrão), meu palpite é que vamos pecar pelo exagero. Os primeiros e-didáticos
virão com megabytes de penduricalhos, como animações, vídeos e músicas que
“farão vista” mas pouco contribuirão para a fixação do aprendizado, para um
público que já tem tendência ao déficit de atenção. Será como um daqueles revivals do
cinema 3D, nos anos 1980, quando os filmes tinham ioiôs, pássaros e murros na
direção do espectador. Muito efeito pra pouca história.
Quando passarmos a fase do exibicionismo e compreendermos que a grande
vantagem do digital não éreter conteúdo, e sim gerar e distribuir conteúdo,
aí sim teremos instrumentos de educação digital de fato (e não emulações de
velhas cartilhas). Pense na Microsoft Encarta, e pense na Wikipedia. A
primeira tinha a pretensão de ser a mais completa Enciclopédia, atulhada de
gracinhas multimídia. A Wikipedia queria ser uma forma, aberta e simples, de
acumular conhecimento, de forma comunitária. A milionária Encarta ficou
desatualizada no dia que saiu da fábrica. A Wikipedia tem mais de 4 milhões de
artigos, só em inglês, constantemente atualizados.
Dar um salto cultural e reconhecer que o livro didático digital é mais
que uma versão eletrônica dos livros que conhecemos pode gerar um efeito
parecido. Imagine um livro de Geografia ou História que identifique (por GPS)
onde o aluno mora e fale sobre sua cidade, atualizando os dados demográficos.
Ou que dê instrumentos para que o professor exerça a curadoria de um cabedal de
“objetos didáticos” que estão à disposição na internet (dispensando o
atulhamento de bytes no arquivo). E que compile a curadoria de milhares de
professores e que sugira o melhor conteúdo extra para cada escola, considerando
a localização, situação econômica e nível educacional. Ou um livro que permita
a cada escola montar seu “sumário” de acordo com o perfil da turma, ou mesmo um
para cada estudante (estimulando vocações, adequando-se a perfis culturais,
compensando desníveis).
Enfim, em teoria, o digital já nos dá todos os recursos para que a
experiência de aprender com um livro didático não precise mais ser padronizada
(o mesmo livro para todo mundo) nem padronizante (todos pensando do mesmo
jeito).
McLuhan (sempre ele) previu, há quase meio
século, que a chegada da era digital permitiria que os estudantes enfim se
livrassem do método educacional de “pacote” e passassem para o de “descoberta”.
“À medida que a plateia torna-se participante no drama eletrônico total [por
meio da internet] a sala de aula pode tornar-se a cena em que a plateia
desempenhará um volume imenso de trabalho.” O velho Marshall acertou em muitas
de suas previsões (a internet, a pirataria, a mídia social), mas sua previsão de
uma didática eletrônica libertadora ainda está para ser cumprida. Se é que
vamos, um dia — ou nossos filhos, ou seus filhos —, cumpri-la.
Julio Silveira é editor, formado em Administração, com
extensão em Economia da Cultura. Foi cofundador da Casa da Palavra em 1996,
gerente editorial da Agir/Nova Fronteira e publisher da Thomas Nelson. Desde
julho de 2011, vem se dedicando à Ímã Editorial, explorando novos modelos de
publicação propiciados pelo digital. Tem textos publicados em, entre outros, 10
livros que abalaram meu mundo e Paixão pelos livros (Casa da Palavra), O futuro do livro (Olhares, 2007) e LivroLivre (Ímã). Coordena o fórum Autor 2.0, onde
escritores e editores investigam as oportunidades e os riscos da publicação
pós-digital.
Foto: Thiago Barros
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